Futebol

Há 50 anos, Pelé marcava o seu milésimo gol

Maestria, ansiedade e muita emoção... Sobram histórias em torno do dia 19 de novembro de 1969. LANCE! traz as memórias de quem viveu aquela explosão digna de um Maracanã

Por Lance! 19/11/2019 16h04
Há 50 anos, Pelé marcava o seu milésimo gol
Andrada sofreu o milésimo gol de Pelé - Foto: ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO

A magia do futebol de Pelé ganhou proporções ainda maiores há 50 anos. Ao converter, às 23h23, pênalti que ele mesmo sofreu e balançar a rede do vascaíno Andrada no dia 19 de novembro de 1969, no Maracanã, o "Rei do Futebol" atingiu a incrível marca de mil gols em sua carreira.

Autor da jogada que culminou no pênalti sofrido pelo camisa 10 do Santos, Clodoaldo não esconde sua gratidão de fazer parte de um momento marcante da história do companheiro.

- Recebi a bola da intermediária, o Pelé dominou e acabou sofrendo o pênalti. Inclusive, nossa confiança foi tanta que, na hora da cobrança, todos ficamos no meio de campo - afirmou, ao LANCE!.

A partida, válida pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, foi marcada por situações curiosas. O Vasco, que além de Andrada, tinha nomes como Fidélis, Alcir e Buglê, abriu o marcador, em finalização de Benetti. O Peixe reagiu e o milésimo gol foi "adiado" de maneira inusitada.

- Eu avancei pela esquerda e cruzei para a área. Só que o Renê, que estava marcando o Pelé, chegou antes e marcou um gol contra de cabeça (risos) - contou Edu.

Até, na reta final, o passe de Clodoaldo encontrar Pelé. O camisa 10 caiu após choque com o zagueiro vascaíno Fernando, que até hoje segue na bronca com a arbitragem da partida.

- Duvido que o pênalti, hoje, com este auxílio do VAR, fosse marcado. O Pelé entrou na área com a bola e logo depois de driblar, se atirou diante de mim. Não foi nada - garante.

Lateral-esquerdo do Cruz-Maltino na partida, Eberval também é categórico em relação à jogada.

- Como o gol mil não tinha acontecido na Bahia, ficou tudo armado para o Maracanã. Foi muito claro que o Pelé trombou com o Fernando de propósito para o juiz marcar o pênalti e entrar para a história. Só lamento mesmo pelo Andrada, que ficou dando socos no gramado depois do gol - afirmou.

A polêmica sobre a marcação do lance é rechaçada do lado santista.

- É claro que foi pênalti. Derrubaram o Pelé na jogada - diz Clodoaldo

O camisa 5 do Santos, que no ano seguinte foi campeão da Copa do Mundo de 1970 ao lado do "Rei", se emociona ao falar do milésimo.

- Foi uma honra abrir caminho para o milésimo gol de Pelé. Um cara habilidoso, fora de série, grande amigo, grande pessoa.

O ex-atacante Edu contou que a atitude dos jogadores santistas no momento da cobrança surpreendeu o camisa 10.

- O Pelé tomou um susto quando viu que a gente estava no meio de campo. Fez uma cara para nós meio ressabiado (risos). Mas, poxa, ali era o momento de glória dele. Tanto que o Agnaldo, nosso goleiro, fez questão de colocá-lo nos ombros para dar a volta olímpica.

Com os olhos marejados enquanto era "carregado" também pela emoção da torcida no Maracanã, Pelé via seu posto de "Rei" ganhar uma dimensão ainda mais intensa no futebol mundial.

'Era uma responsabilidade imensa marcar o Pelé', diz Fernando (Reprodução / Jornal dos Sports)

Um misto de sensações marca os jogadores do Vasco em torno daquele confronto com o Santos. Fernando recorda como foi a responsabilidade de tentar frear a euforia em torno do milésimo gol de Pelé.

- Eu estava com 20 anos, era uma responsabilidade imensa marcar o Pelé, que já era bicampeão do mundo, tinha conquistado tudo pelo Santos... Ele além de um craque, que sabia driblar e chutar bem com as duas pernas, também tinha suas malícias em campo, né?! - detalhou.

O ex-zagueiro, que hoje dá aula em uma escolinha de futebol no interior do Rio de Janeiro, afirma:

- O Pelé sabe que não foi pênalti, ele deixou o corpo de propósito para cair. Lembro que todas as vezes nas quais a gente se enfrentou depois, eu dizia: "pô, Pelé, não foi nada naquele pênalti do gol mil, né?!". Mas é aquela coisa, de jogo marcante, que fica para a posteridade...

Eberval diz que, na época, ficou frustrado também do ponto de vista financeiro.

- Sempre que me perguntam deste lance, falo que meu "bicho" foi embora porque perdemos o jogo. A gente conseguiu sair na frente, teve mais duas ou três chances de ampliar. O Andrada salvou o quanto pôde e, na hora do pênalti, cheguei a soltar um "vai perder" no ouvido do Pelé. Mas não deu - e, em seguida, afirmou:

- Fiquei chateado na hora, mas, é aquela coisa, depois fica na história - completou.

Reserva de Andrada, que faleceu em 4 de setembro deste ano, Valdir Appel chegou a recordar a expectativa em torno de Vasco e Santos em seu livro "Na Boca do Gol". O ex-goleiro do Cruz-Maltino no ano de 1969 contou que, nos dias que antecederam ao jogo, o argentino foi alvo de provocações até de seus colegas Moacir e Buglê, especialmente quando a expectativa pelo gol 999 foi transferida para o Maracanã.

A saga de Pelé até chegar ao seu gol mil foi marcada por momentos curiosos. O atacante estava com 998 gols quando o Santos foi encarar o Botafogo-PB, em 14 de novembro, para um jogo de entrega de faixas do Belo, campeão estadual daquele ano.

- Começou lá em Pernambuco, quando a gente pegou o Santa Cruz e ele fez dois gols. Depois, o Botafogo chamou a gente para jogar na Paraíba. E estava uma euforia tremenda para que o Pelé fizesse o gol mil em João Pessoa... Era uma coisa de doido! - recorda-se Jair Bala.

O "Rei" marcou seu gol de número 999, também convertendo pênalti, ao garantir 2 a 0 para o Peixe. E logo depois, uma nova cobrança foi assinalada pelo árbitro do jogo. Sobrou expectativa em torno da possibilidade do gol mil, mas houve uma reviravolta em campo.

- Eu sei que todo mundo esperava que o Pelé fosse cobrar, mas aí veio o Julio Mazzei, nosso preparador físico, e mandou que o Pelé fosse para o gol (risos). O Jairzão, nosso goleiro, se machucou. E aí ele teve que obedecer - declarou Jair Bala.

A Fonte Nova, então, passou a ser o centro das atenções na contagem regressiva. O Bahia receberia a equipe santista em partida válida pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, no dia 16 de novembro. O ex-colega de ataque de Pelé lembra-se do dia em que o grito de gol ficou preso na garganta do "Rei do Futebol".

- Rapaz, na Bahia, o Pelé tentou de tudo quanto é jeito. Teve um lance no qual ele conseguiu chutar, a bola passou pelo goleiro, mas o beque salvou em cima da linha. Veio uma vaia tremenda no estádio (risos). Aí, já viu, a gente foi para o Maracanã completamente eufórico, tanto para vencer, quanto para dar de presente o gol mil para ele.

Um goleiro guarda boas lembranças ao falar sobre o dia em que mediu forças com Pelé. Titular da meta do Bahia, Jurandir detalha o que fez para evitar que o gol mil saísse na Fonte Nova.

- Havia um movimento muito sólido entre a gente de que Pelé não faria gol no Bahia. O Elizeu, que tinha jogado no Santos, passou informações sobre todas as formas de como o Pelé driblava, cabeceava, chutava. Também procurei saber com parentes meus outras coisas sobre ele. Acho que ninguém sabia mais de Pelé do que eu naquele momento. Eu treinei feito louco para aquela partida - declarou.

Aos seus olhos, há uma lenda em relação às vaias para Nildo "Birro Doido", que salvou em cima da linha uma chance clara do camisa 10. Após o zagueiro rechaçar, a bola, caprichosamente, ainda bateu na trave.

- Dizem que as pessoas vaiaram o Nildo. É uma grande mentira! A torcida do Bahia não vaiou nem ele, nem a gente. Nós saímos de campo nos braços do povo. Quem vaiou foram os torcedores do Vitória presentes no estádio - afirma.

O ex-goleiro ressalta que, até no único momento no qual ele não segurou o ímpeto santista no empate em 1 a 1, a bola não parou nos pés do "Rei".

- Pelé teve uma chance no fim e a bola acabou batendo na trave. Levei um gol, mas do Jair Bala, em uma chance indefensável. Fui pressionado durante a semana a tomar o milésimo gol, mas como bom sertanejo que sou, me propus a não levar. E honrei minha dignidade - comemora.

Jurandir mostra-se solidário ao vascaíno Andrada.

- Tenho muita pena dele. Até o fim da vida foi associado ao milésimo gol do Pelé. Foi um grande goleiro, merecia muito mais do que ficar marcado por isto - lamenta.

Uma multidão de jornalistas e fotógrafos se aglomerou atrás da meta defendida por Andrada para esperar a cobrança de Pelé. Única mulher presente na cobertura da partida entre Vasco e Santos, Cidinha Campos não esconde os apuros pelos quais passou no Maracanã.

- Imagina, eu era a única mulher em campo, de cabelo curtinho e vestindo macacão. Um torcedor chegou a gritar: "viado" (risos). Assim que saiu o gol e fui me levantar, um jornalista me deu uma cotovelada no estômago. Só que a gente levava na esportiva - disse:

- Foi um momento maravilhoso, dá vontade de chorar sempre que a gente se lembra. Nunca tinha feito uma cobertura de jogo, e logo acompanhar aquela ovação, com mais de 100 mil pessoas aplaudindo o Pelé (o Maracanã contabilizou 65 mil pessoas no duelo) - completou.

A jornalista, que apresentava o programa "Dia D", na TV Record, foi a primeira a conseguir uma entrevista exclusiva com o "Rei do Futebol" após ele ter marcado o milésimo gol. Além de conversar com o camisa 10 no Maracanã após a vitória por 2 a 1 do Santos sobre o Vasco, ela seguiu com a celebração do elenco do Santos após o gol mil.

- Todos fomos para um show do Wilson Simonal no Canecão. E conseguimos tudo de maneira bastante espontânea. Era uma época que a gente fazia as matérias na base de "se conseguir, deu, se não, paciência". Foi lindo!


COM A PALAVRA

'Euforia em todas as rádios'

JOSÉ CARLOS ARAÚJO

Repórter da Rádio Globo em 1969

Após o milésimo não ter saído na Fonte Nova, uma euforia tomou conta nas rádios daqui no Rio de Janeiro. Repórteres de todos cantos estavam no Maracanã, e todos amontoados de maneira desorganizada. Lembro que nosso desafio era ainda maior porque precisávamos assistir ao jogo sentados no gramado, senão atrapalhávamos os "geraldinos".

Teve uma coisa muito marcante em torno deste pênalti. O Maracanã tinha um gramado muito irregular nesta época. Lembro que meu chefe, o saudoso Waldir Amaral, estava narrando a expectativa em torno da cobrança do Pelé, quando interrompi e alertei: "Waldir, o Fidélis (zagueiro do Vasco) está esburacando a marca do pênalti".

O Andrada por um triz não pegou a cobrança e, depois do gol, foi aquela confusão. Todo mundo invadiu o campo, a partida foi paralisada para uma volta olímpica. Eu fui perceber o impacto de participar deste momento muito tempo depois. Estava no mesmo voo que Pelé em 2010, a gente nunca tinha se encontrado antes, ele me chamou pelo nome, e conversou comigo na maior humildade.

"Dedico este gol às criancinhas pobres do Brasil. A gente tem de olhar para elas", disse Pelé, à Rádio Jovem Pan, em suas primeiras palavras após, em 19 de novembro de 1969, ter balançado as redes pela milésima vez em sua trajetória. Um dos garotos que assistiram à partida foi Roberto Sander, que atualmente é jornalista e escritor.

- Na época, eu tinha 11 anos e, mesmo sendo tricolor, já ia ao Maracanã com meu pai para assistir a jogos de grandes equipes. Aquela seria uma efeméride e tanta, além de ser o Santos de Pelé, havia uma expectativa gigantesca pelo gol mil - afirma o jornalista.

Sander guarda a batalha que o "Rei" teve de enfrentar para balançar a rede do vascaíno Andrada.

- Era nítido o quanto o Andrada queria evitar o milésimo gol. O Pelé chutou de fora da área umas três, quatro vezes, e o goleiro do Vasco saltou e fez defesas dificílimas - disse.

Aos seus olhos, a cobrança de pênalti do camisa 10 do Santos foi digna de pulsar o Maracanã.

- Foi como um ato litúrgico. O estádio inteiro em silêncio aguardando a cobrança. E depois, com o milésimo gol, a coroação definitiva do "Rei do Futebol".

Pelé marcou 1283 gols em sua carreira e conseguiu, como poucos, ser ovacionado por torcidas dos quatro cantos do país. A magnitude em torno do astro foi refletida pelo bom humor de Edu ao falar sobre a recepção da torcida em jogos do Peixe.

- Tínhamos um time emblemático, muito marcante. Mas quem usava a camisa 11 acabava "sofrendo" um pouco. Quando o locutor anunciava "10, Pelé", a torcida vinha abaixo e ninguém escutava o nome do jogador seguinte. Eu fiquei com a camisa 9 no jogo com o Vasco. Naquele dia falei para o Abel: "esquece, ninguém vai ouvir seu nome, ainda mais no Maracanã". O "frisson" em torno do Pelé era muito grande. E ele merece isto e muito mais - afirmou.