Fatalidade

"Tento manter a cabeça pensando que voltarei a andar", diz Lais Souza

Por Uol Notícias 01/10/2017 13h01
'Tento manter a cabeça pensando que voltarei a andar', diz Lais Souza
Laís Souza - Foto: Wander Roberto

O "Tema da Vitória", música que coroa as conquistas de atletas brasileiros na televisão, toca quando Lais Souza, 28, entra no auditório. A ex-ginasta ajudou a seleção nacional a alcançar resultados históricos nas Olimpíadas de 2004 e 2008. Em 2014, se preparava para representar o país em uma nova modalidade, o esqui, quando sofreu o acidente que a deixou tetraplégica.

Um cuidador a leva até o palco e segura o microfone enquanto ela fala, diante de uma plateia de estudantes, sobre a entrada no esporte aos quatro anos, a saída de casa, aos dez, para perseguir a carreira na ginástica, a descoberta do "mundo branco" do esqui e a colisão a 70 km/h com uma árvore, que provocou uma fratura na coluna cervical.

As vértebras C3 e C4 se romperam e comprimiram a medula de Lais, tirando-lhe os movimentos abaixo do pescoço.

As palestras são hoje sua principal fonte de renda. "Boa parte" da pensão vitalícia de cerca de R$ 5.000 que recebe é gasta em remédios. Tem contado com o apoio de atletas como Doda Miranda e Neymar -o jogador ajuda "no que for necessário". Tem ainda um patrocínio da Universidade Estácio, onde estuda psicologia.

Só com cuidadores, gasta por volta de R$ 10 mil. São três: um durante o dia e outros dois que se revezam no turno da noite. Estes ela contratou recentemente para ter mais autonomia, sem depender tanto da mãe, dona Odete, com quem mora. "Falei: vou começar a 'facul' e quero uma vida mais minha. Mas tenho que trabalhar muito pra pagar eles", diz ao repórter João Carneiro, em seu apartamento em Ribeirão Preto (SP).

Willian, que a acompanha durante o dia há mais de três anos e ganhou de Lais vários apelidos (Ogro, Shrek, Neném), diz que a paciente é ciumenta -o que ela reconhece- e se gaba, para os colegas, de acompanhá-la nas viagens mais longas sem se cansar. "Eu sou o crossFit dele", brinca ela.

Mesmo para tarefas simples, Lais depende de quem está à sua volta. Em uma hora e meia de entrevista, pede três vezes que afastem fios de cabelo do seu rosto. A posição das mãos e das pernas também deve ser trocada para evitar que o corpo seja marcado ou a circulação cortada.

"Eu sempre morei sozinha, paguei minhas contas, nunca tive que pedir ajuda pra minha mãe. Aí, de repente, sei lá, parece que eu virei uma criança de novo. Quando eu cheguei, tinha que usar fralda, dependia de comida na boca. Tudo de novo. Aos poucos, eu fui conquistando", diz.

Hoje, conta, já faz "tudo". "Vou pra balada, pro bar, pro restaurante, pro cinema, pra onde for. Não tem muito segredo, não. Às vezes, os lugares não são adaptados, mas os cuidadores são", brinca.

Ela mantém a esperança de voltar a andar. Poucos meses depois do acidente, fez no punho uma tatuagem que mostra uma pessoa se levantando de uma cadeira de rodas. Willian, a mãe e alguns amigos fizeram o mesmo.

O desenho é o símbolo do Miami Project to Cure Paralysis (Projeto Miami para Curar a Paralisia), um centro de pesquisa americano onde Lais participa de um tratamento com células-tronco. Foram três aplicações até agora e ela aguarda a aprovação das autoridades de saúde do país para receber novas doses. Periodicamente, vai a Miami para exames de rotina.

Tem obtido vitórias nas "pequenas coisas": A sensibilidade melhorou em um lado das nádegas, debaixo do pé, na barriga e nas costas. Não é possível determinar se o avanço é fruto do tratamento ou reflexo de uma recuperação natural.

Na fisioterapia, em Ribeirão Preto, faz exercícios de abdômen e glúteos em que consegue afastar as costas de um apoio ou, com a ajuda do treinador, erguer o quadril. E mostra os avanços em vídeos no Instagram: um deles, feito no dia da entrevista, tinha mais de cem mil visualizações um dia depois.

Também usa um aparelho que permite que ela fique em pé sozinha e que o fisioterapeuta a mova, reproduzindo uma caminhada. "Os médicos falam que eu tenho que imitar o movimento. Se eu tô andando, tenho que fingir que tô andando de verdade. Aí, o cérebro vai entendendo que aquilo ainda tem, que ainda existe", explica.

"Eu tento manter a minha cabeça pensando que isso vai acontecer, sim, de eu voltar a andar. Se não acontecer, se minha vida continuar do jeito que está, acho que vou ter que dar mais atenção à minha saúde. E penso, talvez, em fazer algum esporte [adaptado], montar minha clínica, ter um instituto. Essas coisas não estão longe de acontecer."

Ela diz que não teve problemas severos de saúde mental depois do acidente, mas que é "um pouco depressiva. Não é um caso clínico, mas [sou] um pouco depressiva pela deficiência, mesmo. O mundo muda totalmente. Tenho um outro tipo de vida, sou uma outra Lais".

Sua mãe, dona Odete, entra na conversa para contar que em um momento, ainda no hospital, a filha disse que queria morrer. "Eu falei assim: 'Morrer, o cacete! Se tivesse que morrer, você já tinha morrido, minha filha! Você sossega teu facho, que agora é pra frente que vai! Não é assim, não! Tá pensando que é fácil morrer?'" Lais ri.

Dona Odete lamenta os casos de abandono de pessoas com deficiência por suas famílias e exclama: "Aqui, não, filho! Essa daí é cheirosa! A pele dela, em quatro anos de lesão, nunca teve uma ferida. Ela é tratada a pão de ló!". Lais diz que seu grande medo, hoje, é a morte dos pais.

A ex-ginasta conta também que acha a vida amorosa "a parte mais difícil" para um cadeirante. "Muda muito. É a mesma coisa que pôr um pedaço de carne na frente de um cachorro e ele não poder pegar. Tem todo um outro lado, mais carinho, mais beijo, estar mais próximo. Isso, sim. Mas é um ponto de dificuldade pra mim. Sou sagitariana. Sagitariano é muito quente! Entendeu?"

"Acho que eu encontrei o meu jeito [em relações amorosas]. O problema é a pessoa entender o que eu estou passando. Querendo ou não, vão ser muitas mudanças". Lais teve uma relação recente, que "deu certo, mas a pessoa mora longe". E diz que pensa em ser mãe no futuro.

"Eu nunca ia deixar a peteca cair. A vida aconteceu assim e tem que seguir. Eu também tenho minhas fraquezas, às vezes fico triste, sem entender o porquê de tudo isso. Mas eu venho parando de me perguntar por que e seguindo. Sei lá. É assim. Eu sou uma pessoa normal, entendeu?"