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Marta é a melhor história e a maior tragédia da Copa do Mundo

A carreira da estrela brasileira é uma amostra do que é possível no futebol feminino – e também um lembrete da invisibilidade às atletas do esporte.

Por HuffPost US 29/06/2019 16h04
Marta é a melhor história e a maior tragédia da Copa do Mundo
Marta pode não está no primeiro jogo da seleção - Foto: Reprodução

Fãs do Brasil, uma superpotência do futebol que não vem ganhando muitos títulos ultimamente, há mais de uma década estão acostumados à tristeza de ver suas seleções derrotadas por equipes de menos tradição.

Mas a derrota para a França no domingo passado, nas oitavas de final da Copa do Mundo de futebol feminino teve uma dose especial de decepção: longe de casa, em um campo em Le Havre, a melhor jogadora de futebol do País – e provavelmente a melhor jogadora de todos os tempos – pode ter vestido o uniforme da Seleção pela última vez, ao menos numa Copa do Mundo.

Todas as carreiras terminam um dia, até mesmo a dos jogadores que no auge parecem imortais. Aconteceu com Pelé e Zidane, Ronaldo e Cruyff. Eles são reverenciados pelo que fizeram em campo.

Marta disputou uma Copa do Mundo que é consequência da inevitável expansão do futebol feminino, mas o fez com o uniforme de um país que continua resistindo ao progresso do esporte. Marta revolucionou o futebol feminino, mas ao mesmo tempo é uma prova de que jogadoras de extremo talento têm capacidade limitada de influenciar o futuro do esporte se os dirigentes em países como o Brasil e num mundo controlado pela Fifa não estiverem dispostos a investir.

Marta é a melhor história do futebol feminino, mas também sua maior tragédia.

Marta despontou no cenário global em 2007, parte de uma geração de ouro que poderia ter transformado o Brasil numa superpotência similar à da equipe masculina. Ela recebeu os prêmios de artilheira e melhor jogadora do torneio. Com apenas 21 anos, ela levou a seleção à final, derrotando as arquirrivais americanas no processo.

Foi por essa época que ela recebeu o apelido de “Pelé de saia”. No campo, fazia sentido, mesmo que as mulheres joguem de shorts. Até então, o mundo não tinha visto uma jogadora que combinasse habilidade técnica e força física de forma tão completa.

Algumas jogadoras eram capazes de acompanhar sua velocidade, mas Marta tinha destreza técnica única, desafiando as noções do que era possível para o futebol feminino, como escreveu Kim McCauley num perfil da jogadora antes da competição deste ano.

Marta confundia as adversárias com dribles e toques audaciosos que vêm à mente quando pensamos na seleção brasileira masculina. E não era só para se mostrar. Marta marcou algumas centenas de gols em sua carreira, incluindo 111 pela seleção. Mas provavelmente nenhum seja melhor que o último da semifinal contra os Estados Unidos, em 2007.

A habilidade de Marta deixou uma marca indelével no futebol feminino. Em 2007, a humilhação completa a que ela submeteu a seleção americana, como detalha McCauley, mudou o futuro do esporte. O grande poder do esporte, e por consequência o mundo inteiro, tiveram de rever como abordavam o esporte. Não foi tão diferente do que fizeram Pelé, Garrincha e outros craques que mostraram ao mundo o jogo bonito, nos anos 1950 e 1960, mudando o futebol para sempre.

Fora dos campos, entretanto, comparações entre Marta e Pelé fazem pouco sentido. Pelé estreou na seleção em 1957, quando os clubes brasileiros já estavam entre os melhores do mundo, e a seleção estava às vésperas de conquistar sua primeira Copa. Ele participou dos títulos de 1958, 1962 e 1970.

O sucesso não foi acidental; além do talento inato dos jogadoras, houve um esforço concertado para elevar o futebol brasileiro. O Brasil foi campeão porque o Brasil – o País todo e, acima de tudo, os dirigentes do esporte – assim quis.

O sucesso de Pelé o transformou numa estrela global, um dos atletas mais bem pagos do mundo e um ícone até mesmo em países em que o futebol não era um esporte muito popular. “Meu nome é Ronald Reagan, sou o presidente dos Estados Unidos”, teria dito o ex-presidente americano a Pelé numa visita à Casa Branca, nos anos 1980. “Mas você não precisa se apresentar, porque todo mundo sabe quem é o Pelé.”

Marta, por sua vez, sempre permaneceu em relativo anonimato, pouco conhecida entre os que não são fãs ardorosos do futebol feminino. Alguns torcedores casuais podem conhecer seu nome, mas é difícil imaginar que o mundo entenda o impacto dela no esporte ou reconheça o lugar que ela merece entre as lendas do futebol – brasileiro e mundial.

O sucesso definitivo em uma Copa, que garante a imortalidade no Brasil, não foi alcançado por Marta e por sua talentosa geração. Mas essa é uma explicação conveniente para a baixa visibilidade dela – porque esse sucesso também tem seu preço, e a CBF nunca esteve disposta a pagá-lo.

Depois da derrota para a Alemanha na final de 2007, a entidade que dirige o futebol brasileiro, em vez de investir na equipe, essencialmente a abandonou.

É isso o que peço para as meninas. Não vai ter uma Marta para sempre. O futebol feminino depende de vocês para sobreviver.Marta

Doze anos depois, como detalhou a historiadora do futebol latino Brenda Elsey, o Brasil segue sem um campeonato profissional de mulheres nos quais as jogadoras tenham um salário decente. A seleção não recebe quase nenhum investimento. As jogadoras são objetificadas sexualmente. O sucesso modesto da equipe esconde o fato de que, como escreveu Elsey, “talvez não haja país nas Américas em que o futebol feminino seja sujeito a tratamento tão draconiano”.

O resultado disso é que a seleção brasileira vem sendo deixada para trás por outros países. O Brasil chegou às quartas de final em 2011, mas desde então não passa das oitavas. Parte tem a ver com falta de sorte e chaves difíceis, mas é difícil ignorar que França e Alemanha — duas equipes que nem sequer se classificaram para a Copa de 2007 — hoje estão sempre entre as favoritas, graças a investimentos e atenção de suas federações nacionais.

Marta mudou o esporte, mas sua influência tem limites. O resto cabe à CBF e à Fifa, entidade que controla o futebol global e que continua a dar tratamento de segunda linha ao esporte, apesar de se vender como agente de mudanças.

O fato de que isso não aconteceu, especialmente no Brasil, é prova do sexismo, da incompetência e da corrupção da Fifa e das federações nacionais a ela afiliadas. Marta e suas companheiras – das veteranas Formiga, Bárbara e Cristiane a craques emergentes como Debinha e Ludmila, que joga no campeão espanhol Atlético de Madrid – são prova de que o talento existe no País, e os torcedores brasileiros estão cada vez mais interessados no futebol feminino.

Mesmo com partidas disputadas no meio do dia, e apesar da disputa da Copa América no país na mesma época da Copa do Mundo feminina, as partidas da seleção feminina bateram recordes de audiência, com mais de 20 milhões de telespectadores.

Como observa Elsey, há pressões por mais investimentos que vêm de cima – a federação sul-americana implementou regras para promover o desenvolvimento do esporte – e de baixo, por parte de organizações independentes que querem aumentar a participação das meninas. Os ingredientes estão aí. Mas a CBF faz muito pouco pelo esporte.

Marta não disse se esta foi sua última Copa, mas as companheiras sabem que o fim está próximo.

De qualquer maneira, ela transformou suas duas semanas na França em uma cruzada por igualdade. Depois de vencer a Jamaica, Marta procurou Cedella Marley, filha de Bob Marley e maior benfeitora das Reggae Girlz, para pedir que ela continue apoiando o esporte na ilha.

Contra a Austrália, ela comemorou um gol apontando para uma bandeira pela igualdade em sua chuteira. Para isso, ela abriu mão de um contrato de patrocínio com uma empresa de material esportivo. Nas partidas contra a Itália e a França ela estava de batom, como símbolo de seu comprometimento com o esporte. Marta disse que ela e suas companheiras de equipe estavam lutando para “representar as mulheres”. Depois da eliminação diante da França, ela pediu que as meninas brasileiras continuem lutando pelo futuro.

“É isso o que peço para as meninas. Não vai ter uma Formiga para sempre. Não vai ter uma Marta para sempre. Não vai ter uma Cristiane para sempre”, disse ela, em referência a duas outras lendas do esporte no Brasil. “O futebol feminino depende de vocês. Valorizem mais. A gente tem de chorar no começo para sorrir no fim.”

Num mundo justo, Marta teria seu merecido lugar no panteão que celebra Pelé e Garrincha, Ronaldo e Romário, Ronaldinho e tantos outros. Mas a maior jogadora da História do futebol feminino teve de terminar sua Copa implorando para que as meninas garantam a sobrevivência do esporte que ela ajudou a construir – porque as pessoas no comando ainda se recusam a fazê-lo.