Saúde

App do Ministério da Saúde recomenda remédios sem eficácia contra covid-19

O aplicativo TrateCov foi lançado no dia 14 deste mês, em Manaus, pelo próprio ministro Pazuello

Por Reuters 20/01/2021 17h05
App do Ministério da Saúde recomenda remédios sem eficácia contra covid-19
O aplicativo TrateCov foi lançado no dia 14 deste mês, em Manaus, pelo próprio ministro Pazuello - Foto: Reprodução/Web

Apesar de o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, garantir que o governo não indica o tratamento precoce para a covid-19, a pasta mantém no ar um aplicativo que indica o uso de medicamentos como cloroquina, ivermectina e azitromicina, que não têm eficiência comprovada contra a doença e que podem provocar efeitos colaterais graves.

O aplicativo TrateCov foi lançado no dia 14 deste mês, em Manaus, pelo próprio ministro Pazuello e, de acordo com o ministério, seria indicado para profissionais de saúde. Em nota publicada em sua página, o ministério diz que a plataforma é direcionada a profissionais de saúde para "aprimorar e agilizar os diagnósticos da Covid-19" e ajudar "o atendimento e resposta adequados para o paciente de acordo com cada caso".


No entanto, como mostrou inicialmente o site The Intercept, qualquer pessoa pode acessar o aplicativo. Ao menos por enquanto, nem o aplicativo nem o site exigem identificação ou registro de médico para serem acessados.

O programa exige apenas o preenchimento de dados simples do paciente, como peso e idade, e traz questões sobre sintomas, doenças preexistentes e possível contato com pessoas com diagnóstico de covid-19. O app não apenas auxilia a encontrar o atendimento adequado, como diz o ministério, mas recomenda o tratamento com os medicamentos.


A Reuters fez seis simulações de pacientes no aplicativo. Independentemente da idade, sintomas ou doenças preexistentes, a recomendação foi sempre a mesma: difostato de cloroquina 500 mg, hidroxicloroquina 200 mg, ivermectina 6mg, azitromicina 500 mg, doxiciclina 100mg, sulfato de zinco e dexametasona.

O aplicativo não permite alterar as dosagens ou retirar um dos medicamentos, independentemente das doenças preexistentes, apesar de alguns medicamentos trazerem riscos. A cloroquina, por exemplo, pode causar arritmia em pacientes com problemas cardíacos. Já a dexametasona traz riscos para pacientes com pressão alta ou diabetes.

Procurado pela Reuters, o Ministério da Saúde não respondeu de imediato.

O infectologista José David Urbáez, representante da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), disse que, além de não haver comprovação para o uso dos medicamentos, os efeitos adversos da combinação podem ser graves.

"Já é farto e sabido que a cloroquina e a hidroxicloroquina não têm ação antiviral. O uso somado dos dois está induzindo um potencial elevadíssimo de efeitos adversos graves, inclusive em pacientes cardíacos", disse. "Colocar doxiciclina além de tudo, somada, pode levar a uma hepatite medicamentosa."

Aplicativo criminoso

Urbáez esclareceu ainda que a doxiciclina não pode ser indicada para menores de 12 anos e gestantes, já que interfere no processo de calcificação e formação dos ossos. Uma das simulações feitas pela Reuters foi para uma criança de 10 anos, e o remédio foi indicado da mesma forma.

De todos os medicamentos indicados pelo ministério no aplicativo, apenas a dexametasona tem comprovação de eficácia no uso contra a covid-19. O corticoide, no entanto, é indicado apenas para casos graves, de pacientes internados e em entubação, e não para casos leves.

"O uso indiscriminado, fora do ambiente hospitalar, pode induzir na verdade um aumento da multiplicação do vírus no organismo e esse indivíduo pode evoluir para caso grave por causa do medicamento", explicou Urbáez. "É absolutamente irresponsável e criminoso esse aplicativo."

O infectologista afirmou que, mesmo que seja apenas indicado a médicos, o aplicativo é um desserviço e um risco.

"Nem todos os médicos têm a mesma formação, o mesmo nível de conhecimento. Esse aplicativo é o ministério induzindo o uso de medicamentos sem comprovação e que trazem riscos", afirmou

O chamado tratamento precoce com medicamentos que não têm eficiência comprovada contra covid-19, principalmente a cloroquina, é defendido arduamente pelo presidente Jair Bolsonaro.

Os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich deixaram o governo no ano passado por se recusarem a fazer um protocolo de uso da cloroquina, entre outras divergências com o presidente.

Pazuello, ainda como ministro interino, autorizou a publicação de um guia chamado de "Orientações para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da Covid-19". Por não haver comprovação científica e experimentos relevantes na área, o ministério não pode fazer um protocolo, que tem poder legal.

Esta semana o ministro afirmou, em entrevista, que nunca havia indicado o tratamento precoce, apenas "atendimento precoce." O ministro, que não é médico, alegou que como leigo pode ter usado "o nome errado", mas garantiu que o ministério não tem protocolo e que cabe aos médicos decidir quais medicamentos serão prescritos.

Ainda assim, na semana passada, em ofício enviado ao governo de Manaus, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, pediu autorização para visitar Unidades Básicas de Saúde em Manaus "para que seja difundido e adotado o tratamento precoce como forma de diminuir o número de internamentos e óbitos."

Mayra diz ainda que, diante da gravidade da situação em Manaus, "é inadmissível" a não adoção do tratamento precoce, acrescentando que existiriam "comprovações científicas" sobre o uso do medicamento.

No domingo, ao aprovar o uso emergencial das vacinas CoronaVac e AstraZeneca contra a covid-19, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) citou a ausência de tratamentos disponíveis contra a covid-19 como uma das razões a justificar o início da vacinação antes do registro definitivo dos imunizantes.